Bem- Vindo

Bem- Vindo
Queria tanto ser poeta, falar do mundo, do amor... Porque não da dor? Do sofrimento... Da injustiça então... Enfim, falar do meu sentimento

domingo, 22 de junho de 2014

O fim da espera


 

Terminava finalmente a espera.
Passos lentos mas firmes ecoavam a aproximar-se.

Pararam.
“Hoje tem o direito a escolher o jantar, o que vai escolher?”

O homem olhou-o triste, olhar vazio, e assim ficou, sem nada dizer.
O outro, com ar grave, respeitava aquele silêncio, mas em vista da demora viu-se forçado a intervir.

“Tem de me dizer se já escolheu algo para o jantar.”

O homem pareceu despertar dum sono longínquo e disse de voz sumida.
“Desassossego”

“Desculpe?”

“Podia-me trazer o livro do Desassossego? De Bernardo Soares?”

“Se é esse o seu pedido posso claro, e para o jantar? Pode pedir o que quiser.”

“Basta-me o livro do Desassossego.”

“Mas tem de pedir algo para jantar. Tem de comer também”

Insistia o outro.

“Poesia.”
“Alimentar-me-ei de poesia.”

 

Luís Paulo

 

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Sou Poesia


Poderás dizer que já me esqueceste.

Poderás dizer até que o tempo junto a mim não foi o melhor, que querias mais, ir mais alto, viver o glamour.

Não me empreguei – disseste
Que poderia ter feito melhor. Que parecia um artesão do tempo a viajar nos espaços vagos da memória. Que era um amante da poesia e que gastava as horas a esboçar poemas.

Que cometia erros!  
Cometia erros?

Agora, ao ver o passado, não consigo evitar o escorregar de um sorriso. Um sorriso triste, com mágoa, talvez até com raiva e pena de mim mesmo por ter carregado tanto tempo a surdez do teu coração.

Sim, é verdade que cometi erros, afinal sou apenas eu, sem efúgios. Sem a conversa alternativa e abstrata que empregavas nos teus discursos enviesados.

E os poemas que te lia eram tímidos pedaços de mim. Era uma suave olência de amor que o meu coração te oferecia em forma lírica. Um buquê de rosas em jeito de palavras.
E o silêncio que emanava de ti era tão intenso, tão profundo, que era como se me desses a escolher entre o vazio e o nada.
Escolhi sempre o vazio, segurava a ténue esperança que com o tempo o pudesse encher com algum resto do teu amor.

Não sei se alguma vez o enchi, não me lembro, já passou tanto tempo. Também já não importa. Agora vejo tudo muito mais nítido. Hoje, a olhar o teu rosto esfumado na distância, vejo a simbiose perfeita da ignorância e da perfídia.

Sempre vivi á bolina dos teus ventos que me perturbava o equilíbrio, ventos hostis da insipiência, da mentira, da desculpa, como num mar morto onde nada vive.

Ao olhar para trás, vejo agora que era apenas um recluso em liberdade condicional. A minha vida era uma nota de rodapé. Um pequeno comentário, uma referência indigente.

E eu que cedia á docilidade do prazer de te ver passar. Achava agradável o sombreado da tua silhueta. Dava por mim a gostar do cheiro das ruas por onde passavas nesse teu jeito impessoal.

Mas este hiato do tempo revelou o torpor em que estava adormecido e anestesiado da tua voz mesclada e bipolar. O tempo, tão sensato, revelou-me que a vida é poesia, e quem não ouve poesia é um morto-vivo a resvalar nos preconceitos e maledicência.

Hoje sou poesia.

 

Luís Paulo

 

 

 

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Um poema, uma vida


O som da manhã é o ecoar dos passos e as vozes fantasmas a rasgar os corredores frios e os corações agrilhoados. É o tinir metálico das chaves, é o “bum” do ferrolho que se abre, é o som insípido e espaçado das embocaduras
É o silêncio que se esvai.

Depois,
o cheiro mesclado que se mistura e se vai com a água suja e ensaboada, depois as lágrimas, a violação dos sonhos, a morte do corpo.

E os precitos em terror desejam que a noite não cesse.
Ao invés dos gritos fantasmagóricos do dia, querem o pensamento a cirandar naquele espaço confinado e escuro. Só ali podem fingir que existem, que a vida também lhes pertence, e encobertos do mundo sorriem um sonho em que são livres das promessas e do medo.

Antes a dormência da escuridão.
Antes o som do silêncio e o vazio da vida em que nada acontece, do que aquele amanhecer nubloso de mais um dia de angústia e de dor.

Dor sem dor, porque ali a dor não dói.

Lugar habilmente escondido do sol, onde as palavras não vivem e as cores não se soltam. Que evapora a vida. Gládio que fere e se oculta das estrelas distantes e ignotas.

E os anátemas esquecidos pedem a Deus que baralhe a vida e dê de novo.

Um renome.
Qualquer coisa que apague o passado. Um interlúdio do dia que os livre do sobressalto e da culpa déspota.

Um gesto, mesmo insignificante que seja, um sorriso, um perdão, um poema dum poeta que se inspira e se revela.

Um poema,
Uma vida,

Dêem-lhes um poema,

Dêem-lhes um poema e uma vida.

 

Luís Paulo