De algum tempo para cá,
tenho por hábito acordar cedo, dizem que é da idade, não sei, mas hoje, não sei
bem porquê, esqueci-me desse detalhe, e ainda estava deitado… adormecido.
Estava a dormir tão bem,
tão plácido, tão quentinho… quando vagamente principio a ouvir um ruído
impreciso… afastado… distante… muito distante de início, e, lentamente, muito
lentamente, começa a acercar-se, até que ficou nítido, estático, na porta do meu
quarto.
Uma espécie de
esgravatar… um latido quase de angústia, que ia aumentado de tom, até que o
mundo do torpor, letargia, em que estava adormecido, me soltou e despertei
inteiramente. Era a minha lady a chamar-me… um apelo aflito, não sei se
preocupada por estar com a porta fechada, se impaciente para ir á rua, ou falta
de atenção.
Mas, não era um chamar,
assim, tímido, dócil como costume, era um chamar de protesto, de reclamação, de
quem já chamava á muito tempo e não era simetrizada.
Olho o relógio na mesa-de-cabeceira,
e vejo nove horas e cinquenta minutos. “Puxa lady, não podias aguardar mais um
pouco?!” -- Atirei num retórico sonolento, coloquei a mão fora dos lençóis
polares, senti um arrepio a percorrer-me todo o corpo, que instintivamente a
devolvi ao lugar e deixei-me ficar por mais meia hora, provando o encantador
ócio, ignorando as exigências dela.
Mas, em face da
reclamação dela, que cada vez aumentava mais de tom, e como não se nega um pedido
a uma senhora, levantei-me… contrariado, mas levantei-me… experimentei tanto
frio que soltei um impropério… fiz a higiene pessoal todo encolhido e vesti-me.
Com fome e ensonado saí á rua com ela.
Era terça-feira de
carnaval, doze de fevereiro, de dois mil e treze. Chovia… uns chuviscos muito
miudinhos que mais parecia neve devido ao frio. No ar, raiava aquele cheirinho
agradável de lenha que ardia nas lareiras.
Agasalhei a sobrecasaca forrada
a lã, e caminhei com a minha lady a abanar a cauda, indiferente á chuva e ao
frio. Àquela hora, onze horas e quinze minutos, depois de uma noite de folia, a
rua ainda estava deserta.
Seguia eu, no jardim
Cesário Verde, quando algo me chamou a atenção. Um carrinho, aqueles carrinhos
de compras de uma grande superfície, achava-se junto a uns contentores do lixo
que existia próximo á berma da estrada. O carrinho suportava vários sacos, a
dividir talvez o conteúdo, que não se adivinhava o que era. Vou, olho, e vejo
uma mulher com a cabeça introduzida num contentor, um contentor daqueles da
reciclagem, com os dois braços também metidos lá dentro, e revolvia… revolvia,
selecionava e guardava o que achava que devia guardar.
Chamou-me a atenção,
pelo simples facto, que era uma quadra festiva para muitos, o mundo divertia-se,
mas aquela senhora estava ali, á chuva, apanhar objetos do lixo, sem que a
solenidade usasse de magnanimidade para com ela. Não lhe via a fisionomia.
Tinha os cabelos louros suavizados, ondulados, apanhados em rabo-de-cavalo, trazia
um blusão impermeável, almofadado não sei com quê, azul, e umas calças de ganga,
também em azul. Pareceu-me ser uma mulher ainda jovem, pareceu-me pelo facto de
parecer que se vestia jovem.
Segui adiante, o meu
pensamento entristeceu-se, afinal não é um bom quadro de se ver, ou então, era
uma tela em cinzento, que sintetizava uma vida de desalento. Comecei a
Sentir-me mal, por ter reclamado da vida ao levantar-me.
Atravessei a rua, e
fiquei no cruzamento da rua vinte e cinco de abril, onde findava o jardim. A
minha lady brincava na relva. No lado oposto, passava um grupo ébrio de
fantasia nos seus trajes carnavalescos, com pegadas visíveis e abundante do
álcool que havia corrido nessa noite.
Volvidos uns minutos,
ouço o chiar do carrinho de compras. No instante seguinte surgiu a senhora na
esquina, empurrava o carrinho pela orla da estrada. Olhou para mim… pareceu-me
com mais idade que a que a havia imaginado, mas também poderia ser pelo facto
de a vida lhe ser dura, madrasta. Tez morena curtida pelo sol, rugas vincadas ao
redor dos olhos, não se adivinhava a cor dos olhos, eram claros, macios, mas de
olhar duro. A representação do seu rosto era difícil de explicar… trazia doçura
e severidade, mansidão e aspereza, parecia esclarecer uma certa vergonha, mas
uma vergonha nobre, que olha nos olhos, sem medo seja de quem for, porque já
lutou muito e com a resolução, a prontidão de nunca desistir.
E lá seguiu ela, pela
avenida de dois nomes… para mim, a avenida vinte e cinco de abril, para ela, a
avenida da amargura.
Impelia o carrinho, o
carrinho chiava… parecia chorar por ela.
Luís Paulo