Bem- Vindo

Bem- Vindo
Queria tanto ser poeta, falar do mundo, do amor... Porque não da dor? Do sofrimento... Da injustiça então... Enfim, falar do meu sentimento

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Era um dia de Carnaval


De algum tempo para cá, tenho por hábito acordar cedo, dizem que é da idade, não sei, mas hoje, não sei bem porquê, esqueci-me desse detalhe, e ainda estava deitado… adormecido.

Estava a dormir tão bem, tão plácido, tão quentinho… quando vagamente principio a ouvir um ruído impreciso… afastado… distante… muito distante de início, e, lentamente, muito lentamente, começa a acercar-se, até que ficou nítido, estático, na porta do meu quarto.

Uma espécie de esgravatar… um latido quase de angústia, que ia aumentado de tom, até que o mundo do torpor, letargia, em que estava adormecido, me soltou e despertei inteiramente. Era a minha lady a chamar-me… um apelo aflito, não sei se preocupada por estar com a porta fechada, se impaciente para ir á rua, ou falta de atenção.

Mas, não era um chamar, assim, tímido, dócil como costume, era um chamar de protesto, de reclamação, de quem já chamava á muito tempo e não era simetrizada.

Olho o relógio na mesa-de-cabeceira, e vejo nove horas e cinquenta minutos. “Puxa lady, não podias aguardar mais um pouco?!” -- Atirei num retórico sonolento, coloquei a mão fora dos lençóis polares, senti um arrepio a percorrer-me todo o corpo, que instintivamente a devolvi ao lugar e deixei-me ficar por mais meia hora, provando o encantador ócio, ignorando as exigências dela.

Mas, em face da reclamação dela, que cada vez aumentava mais de tom, e como não se nega um pedido a uma senhora, levantei-me… contrariado, mas levantei-me… experimentei tanto frio que soltei um impropério… fiz a higiene pessoal todo encolhido e vesti-me. Com fome e ensonado saí á rua com ela.

Era terça-feira de carnaval, doze de fevereiro, de dois mil e treze. Chovia… uns chuviscos muito miudinhos que mais parecia neve devido ao frio. No ar, raiava aquele cheirinho agradável de lenha que ardia nas lareiras.

Agasalhei a sobrecasaca forrada a lã, e caminhei com a minha lady a abanar a cauda, indiferente á chuva e ao frio. Àquela hora, onze horas e quinze minutos, depois de uma noite de folia, a rua ainda estava deserta.

Seguia eu, no jardim Cesário Verde, quando algo me chamou a atenção. Um carrinho, aqueles carrinhos de compras de uma grande superfície, achava-se junto a uns contentores do lixo que existia próximo á berma da estrada. O carrinho suportava vários sacos, a dividir talvez o conteúdo, que não se adivinhava o que era. Vou, olho, e vejo uma mulher com a cabeça introduzida num contentor, um contentor daqueles da reciclagem, com os dois braços também metidos lá dentro, e revolvia… revolvia, selecionava e guardava o que achava que devia guardar.

Chamou-me a atenção, pelo simples facto, que era uma quadra festiva para muitos, o mundo divertia-se, mas aquela senhora estava ali, á chuva, apanhar objetos do lixo, sem que a solenidade usasse de magnanimidade para com ela. Não lhe via a fisionomia. Tinha os cabelos louros suavizados, ondulados, apanhados em rabo-de-cavalo, trazia um blusão impermeável, almofadado não sei com quê, azul, e umas calças de ganga, também em azul. Pareceu-me ser uma mulher ainda jovem, pareceu-me pelo facto de parecer que se vestia jovem.

Segui adiante, o meu pensamento entristeceu-se, afinal não é um bom quadro de se ver, ou então, era uma tela em cinzento, que sintetizava uma vida de desalento. Comecei a Sentir-me mal, por ter reclamado da vida ao levantar-me.

Atravessei a rua, e fiquei no cruzamento da rua vinte e cinco de abril, onde findava o jardim. A minha lady brincava na relva. No lado oposto, passava um grupo ébrio de fantasia nos seus trajes carnavalescos, com pegadas visíveis e abundante do álcool que havia corrido nessa noite.

Volvidos uns minutos, ouço o chiar do carrinho de compras. No instante seguinte surgiu a senhora na esquina, empurrava o carrinho pela orla da estrada. Olhou para mim… pareceu-me com mais idade que a que a havia imaginado, mas também poderia ser pelo facto de a vida lhe ser dura, madrasta. Tez morena curtida pelo sol, rugas vincadas ao redor dos olhos, não se adivinhava a cor dos olhos, eram claros, macios, mas de olhar duro. A representação do seu rosto era difícil de explicar… trazia doçura e severidade, mansidão e aspereza, parecia esclarecer uma certa vergonha, mas uma vergonha nobre, que olha nos olhos, sem medo seja de quem for, porque já lutou muito e com a resolução, a prontidão de nunca desistir.

E lá seguiu ela, pela avenida de dois nomes… para mim, a avenida vinte e cinco de abril, para ela, a avenida da amargura.

Impelia o carrinho, o carrinho chiava… parecia chorar por ela.

Luís Paulo