Estava uma tarde fria. Após uma manhã encantadora de estival,
a temperatura havia caído rapidamente, fleumática, insensível. A chuva iniciava
a abater-se, gelada, copiosa, miúda, mas firme e teimosa
Eram três horas e cinquenta minutos, a tarde ainda
jovem, achava-se escura, o céu apresentava-se de piche assustador, como algo terrível,
ameaçador, que agravava o espírito do caído… do sofredor. Ao longe, o horizonte
tentava ser conciliador, amnistiava com o arco-íris o dia sombrio, numa
majestade de cor.
As ruas ficaram desertas. Todos se esconderam,
procuraram um lugar seguro, recolheram a um abrigo, a fugir á tormenta que se
avizinhava. A brisa robusta soprava mais enérgica, hostil, agressiva. Os fortes
ventos, a pluviosidade e o granizo, não adivinhava nada de bom, era característico
dum temporal severo. Éolo, Deus dos Ventos e Tempestades, incitava Hélio, a uma
luta… a uma guerra.
Os Deuses manifestavam a sua fúria. Os elementos em
revolta brandiam ao som dos trovões. O arco-íris afastava-se, desaparecia. A chuva
abatia-se agora torrencial. Varria tudo o que encontrava á frente, lavando as
ruas do carcoma, limpando a perversão, lambendo todo o mal. A ventosidade
excessiva amplia de intensidade e rapidez, ventos convocados, comparecem dos
quatro cantos, unem-se, acasalam-se, parindo o caos.
Um homem surge, no final da rua extensa, avança com
dificuldade sob o óbice da vasta flatulência. Com o braço esquerdo estendido,
agarra feroz a ilharga do gabão, que tenta fazer de cobertura, mas mostra-se estéril
a proteção.
Tal Diógenes, o homem abraça a completa miséria. Andrajoso,
cansado da luta titânica, encharcado até aos ossos, entra no bar para se
abrigar… descansar.
“ Boa tarde senhores”. Cumprimenta. Embora de idade
avançada e de semblante cansado, a voz saiu forte, nítida, pausada, detentora
de boa dicção.
Todos se voltaram, espantados perante tal visão.
Alto, sulcos profundos á volta dos olhos pretos, cansados, mas de olhar grave, com
vivacidade e determinação. Tez morena, cabelos compridos ebúrneos, barba também
ela alva que agasalhava todo o pescoço. Rosto pensativo de um filósofo. Os
cabelos e barba estavam lisos, colados á pele pela água da chuva que escorria
por eles em bica, o capote gasto, sem cor, pingava fortemente formando um
pequeno charco á sua volta.
Diante da vasta miséria, o comerciante, homem gordo, baixo,
barriga proeminente, olhos de fuinha, cara abolachada, sanguínea, nariz adunco,
bigode farfalhudo que lhe cobria a boca, mãos grossas, peludas, não
visualizando ali nenhum lucro, olhou-o de viés e disse de forma agressiva, “O
senhor está a sujar-me o estabelecimento e a incomodar os clientes. Por favor
queira retirar-se”. Disse, apontando a rua.
O senhor idoso, totalmente aspergido e de aragem
necessitada, mas de cariz nobre, porte decidido, postura reta, atitude educada
e os seus modos ensinados respeitosamente, perguntou: “
não me autoriza por favor, que me demore aqui um pouco, para me abrigar desta
tormenta?”
“Agradecia que saísse e não impedisse a passagem”. Repetiu
inflexível o comerciante.
O homem, imperturbável, olhar sério, anuiu, “com
certeza cavalheiro, retirar-me-ei de pronto”. Virou-se e dirigiu-se para a
saída, a enfrentar o temporal.
Um cliente, que havia assistido a
tudo indignou-se. “Como é possível esta insensatez?” Vociferou encolerizado.
“Não é realizável o que o senhor acaba de fazer, não vê como chove? Não nota
este vendaval?”
O senhor idoso disse: “ obrigado meu bom amigo, mas aquele
senhor tem razão, estou a sujar todo o seu estabelecimento e a dificultar a
passagem.” E abandonou o local abordando o flato.
O cliente investiu para fora, no encalço do homem
andrajoso para o impedir daquela loucura, mas, ao chegar á rua, imobilizou-se assombrado,
petrificado com o proscénio que presenciou.
Éolo colocava agora toda a sua força. O barulho era ensurdecedor.
Havia todo o tipo de matéria no ar. Telhados amputados das casas, árvores
derrubadas, janelas partidas, carros invertidos, contentores do lixo a voar… O
vento… o trovejar que ecoava pelas ruas e que fazia estremecer todos os
alicerces dos edifícios… as descargas elétricas, com seus raios tremeluzentes
que clareava o dia escuro de branco azulado… mas, ao redor do homem, no meio
daquele érebo, a calmaria, a quietude, o sossego, a paz era evidente, o homem idoso
seguia robusto no meio da tempestade, sem que a intempérie o atingisse, era
como se existisse um muro, uma muralha invisível que o protegia, uma Camada de
Ozono em volta dele.
O cliente incrédulo ao que presenciava perguntou: “Quem
é o senhor, que passa incólume a este furacão? Vai tudo pelos ares, e nós, no
meio deste ciclone, nem uma brisa, uma pequena brisa experimentamos? Quem é
você?”
“Meu bom amigo,” disse o idoso com um sorriso
deferente “o senhor acabou mesmo de ver quem sou, um homem expulso, dispensável
pela maioria. Mas como filho do Homem, posso adiantar-lhe que procuro homens de
boa estirpe. Homens retos assim como o senhor.”
O cliente olha em volta ainda céptico. “Como é possível
estar no meio desta borrasca e não sentir nada, nem um cabelo se mexe pelo
vento, não sinto nada, é como se estivesse a ver um filme em três dimensões”.
Quando olha de novo para o idoso, já não o encontra, tinha desaparecido, dissipou-se,
esfumou-se como a bruma que aparece e desaparece, esvaeceu-se num ápice.
Confuso, o rosto transtornado… “estarei com visões? Estarei louco? Pensava com
nervosismo. Havia sido sempre ateu, sempre achara que essas coisas de Deus era para
crianças na catequese, para as beatas, com sua ladainha de aves-marias, mas agora… isto não era normal, existia
qualquer coisa aqui, algo transcendente, metafisico, enigmático para o mero
humano.
Desata a correr, entra no estabelecimento e grita com
o proprietário: Imbecil, você expulsou Deus da sua casa, seu miserável.
Luís Paulo
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